segunda-feira, 4 de julho de 2011

Será que você é preconceituoso e não sabe?

Somos menos tolerantes do que julgamos ser? No entendimento de especialistas no tema, sim

Cauê Muraro, especial para o iG
Foto: Getty Images Ampliar
Sem tolerância à diversidade o próprio exercício da democracia está comprometido

O retrato usual que compomos do preconceituoso é o do sujeito que persegue e agride homossexuais. Que desfere ofensas contra negros. Ou que acusa de indigno quem segue uma religião que não a sua. Mas o preconceito não existe só assim, tão explícito.

Ações e posturas recorrentes que revelam outra modalidade de discriminação: é uma forma sutil, manifestada muitas vezes sem que nos demos conta. É possível, sim, ser preconceituoso e nem saber.

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Em tese, ninguém quer olhar no espelho e encontrar uma imagem censurável de si. As pessoas, portanto – ou ao menos a maioria delas –, relutam em assumir preconceitos. Sobretudo em tempos de politicamente correto. Mas não deixam de rir quando escutam uma piada que faz chacota de determinado grupo, Eis, aí, esta que talvez seja a fonte mais comum do preconceito que passa despercebido, a situação (supostamente) de humor.

“Não se trata de dizer que se deve ou não rir da piada. Mas, com o riso, estamos identificando um estereótipo – e concordando com ele”, analisa a psicóloga Marian Dias, docente da Unifesp e pesquisadora do LaPE (Laboratório de Estudos sobre o Preconceito), do Instituto de Psicologia da USP. Outro exemplo citado por ela: “Achar que todo homossexual masculino está paquerando o tempo inteiro, que está à procura de alguém”. Não, o fato de você ser homem não o torna automaticamente atraente para todos os gays. E pensar o contrário é, sim, preconceito.

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Costumamos ter uma noção generalizada, pronta, sobre alguma classe, de modo que não enxergamos particularidades. O efeito: o indivíduo adota uma “verdade” como se fosse dele e não entende que ela é produção coletiva. Um preconceito interno, uma atitude psicológica individual – mas que decorre de estereótipos socialmente compartilhados.

Aumentando a voz
Foto: Getty Images Ampliar
O indivíduo adota uma “verdade” como se fosse dele e não entende que ela é produção coletiva

Seríamos, então, menos tolerantes do que julgamos ser? No entendimento de especialistas no tema, sim. Marian Dias lembra-se de umas das diferenciações estabelecidas por estudiosos, o preconceito flagrante versus o preconceito sutil. As denominações dizem tudo, e o segundo é precisamente aquele que tantas vezes cometemos sem ser “de caso pensado”. “Surge até de maneira involuntária, na brincadeira, no excesso de zelo”, pondera Marian.

O excesso de zelo de que ela fala é verificável com frequência no tratamento dispensado a portadores de deficiência. Já virou, inclusive, anedota a situação em que a pessoa, ao auxiliar um cego, eleva o volume da própria voz, como se o problema na visão implicasse dificuldades de audição. Um caso extremo. Mas tal confusão de sentidos surge como decorrência de uma vontade de superproteger, de acolher bem. Inapropriadamente bem: no limite, o exagero é sintoma da impressão de que o outro é menos capaz, a despeito do componente inconsciente – automático, irrefletido – da atitude discriminatória.

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É como quem diz só dar esmola com a recomendação de que o dinheiro seja gasto com comida. Além de anular a humanidade de quem recebe o trocado, o sujeito que procede assim oferece tutela, atém-se a uma ideia de superioridade.

“Isso é uma das coisas que alimenta políticas assistencialistas, e tem por trás uma visão conservadora”, observa Maria da Graça Gonçalves, professora do departamento de psicologia social da PUC-SP. “É como se o outro não pudesse dizer o que quer, não pudesse participar de uma decisão. O preconceito, claro, alimenta isso. Você supõe que determinado grupo é inferior, ou perigoso (como na polêmica do metrô em Higienópolis). Veja quantas concepções que diminuem o outro estão colocadas na palavra ‘diferenciada’.”

Democracia e individualidade
Para Maria da Graça Gonçalves, . Com a ressalva de que o estabelecimento de relações igualitárias não significa a abolição das diferenças. Estas necessitam ser respeitadas – não anuladas.

“Quando a gente pensa em democracia, a gente pensa em governo, voto. Claro que é importante, mas as questões da democracia passam por estabelecer a democracia em cada lugar. Escola, a família, relações na vizinhança. Isso passa por enfrentar e superar preconceitos de toda ordem.”

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A existência de pensamentos conservadores, de padrões, resulta em condutas preconceituosas, mesmo que não ostensivas. Vivemos uma contradição facilmente identificável: a sociedade cultua o individualismo, a singularidade, desde que não se saia do estabelecido. Apesar de esse preconceito discreto, e cotidiano, ter consequências menos graves (de imediato), ele se faz da mesma matéria do preconceito mais visível, violento.

Há outros muitos modos de se expressar a modalidade sutil e velada de discriminação. Desde ofensas dirigidas no trânsito – “tinha de ser mulher!”; “só podia ser um velho!” – a exigência de fotografias em currículos e opções na hora de adotar um filho. Quem as enumera é Mário Davi Barbosa, membro e pesquisador do Nepi (Núcleo de Estudos sobre Preconceito e Intolerância), ligado ao Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina.

A exigência de retrato para análise de vagas de emprego, de acordo com ele, apesar de legalmente proibida, “é feita cotidianamente”. O propósito é fazer a seleção não apenas de atributos técnicos, “mas, e principalmente, das qualidades físicas que não raras vezes são associadas a uma ‘beleza helênica’, ou seja, branca”.

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A respeito da adoção, Barbosa considera que muitas crianças vagam de abrigo em abrigo, até chegar à maioridade, por não se enquadrarem em certo perfil. “Ouvi um juiz da infância dizer que é preciso que mudemos nossa visão sobre esse fenômeno, ou seja, que devemos encontrar a melhor família para a criança, e não a melhor criança para as famílias. O que vemos são as famílias tentando encontrar a melhor criança que se encaixe nos moldes pré-concebidos (aparência, idade, cor da pele).”

Formação
Não se pode imaginar alguém que esteja livre de exercer, em absoluto, toda e qualquer espécie de preconceito, alguém que não tenha suas discriminações. Por sutil que elas sejam, porém, é recomendável a reflexão acerca de causas e desdobramentos. Eles se abatem tanto sobre a “vítima” (que vê reforçada sua adequação a um estereótipo nocivo) quanto sobre o “autor” (que tem limitada sua formação, na medida em que se mostra refratário ao entendimento e ao convívio com diferenças).

“Na sociedade atual, a formação plena é impossibilitada, mas, para a psicologia, a gente só se forma se tiver contato com esses outros ‘eus’ diferentes. O sujeito que não aceita a diferença, assim, é mal formado”, afirma a psicóloga Marian Dias.

Segundo ela, não adianta argumentar numa roda que só vai contar aquela piada de loira porque, afinal, “foi inclusive uma loira que me contou primeiro, então não tem problema”. A “justificativa”, avalia Marian, reforça o clichê e aponta a inadvertida conivência do “alvo” da tirada de humor. Por trás do riso, se ele ocorrer, está o reforço de um estereótipo: a sutileza não elimina o preconceito.

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