Tudo ao mesmo tempo agora
Com a atenção das crianças dividida entre vários estímulos tecnológicos, pais têm de determinar quando é hora de por limites
Alexandra Moraes, especial para o iG São Paulo
Um olho na tela do computador, outro no dever de casa, e, entre uma coisa e outra, uma conferida rápida na TV. As mãos digitam mensagens no celular ou mudam as faixas no iPod, e os ouvidos estão ocupados por fones. A atenção das crianças é disputada a tapa por todo tipo de estímulo, e elas conseguem responder a todos esses chamados com o que parece ser uma capacidade cada vez mais precoce de administrá-los ao mesmo tempo. Uma pesquisa do canal infantil Cartoon Network concluída no primeiro semestre deste ano mostrou que 73% das crianças brasileiras com idades entre 7 e 15 anos são multitarefas. A interação das crianças com a tecnologia começa com a TV, passa por videogame e computador e, na pré-adolescência, costuma incorporar o celular.
Outro estudo, feito em 2007 pelo grupo de marketing NPD, indicava que crianças de dois anos frequentemente já faziam mais de uma coisa ao mesmo tempo. Outras pesquisas e especialistas, porém, demonstram que o hábito de se desdobrar entre múltiplas tarefas, às vezes tido como desejável para se integrar ao caráter fragmentado e cheio de estímulos do cotidiano, pode na verdade contribuir para que não se faça nenhuma delas da melhor maneira.
Um estudo de neurocientistas da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, Estados Unidos, mostrou que, ao executar mais de uma tarefa ao mesmo tempo, o sistema nervoso ativa um tipo de memória diferente daquele colocado em operação quando a tarefa é apenas uma. Numa situação multitarefas, é ativada a chamada memória não declarativa, procedural, a mesma que armazena informações para executar atos que se tornam quase automáticos, como andar de bicicleta. O resultado é o grau de consciência e aprendizado diante de mais de um estímulo ao mesmo tempo é menor que numa situação em que estamos concentrados em apenas uma coisa, quando a memória ativada é a consciente.
Para a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, professora da UFRJ e autora do livro “Fique de Bem com Seu Cérebro”, há exagero quando se fala do caráter multitarefas das crianças de hoje. “Você não fazia dever de casa ouvindo música ou vendo televisão? E, antes disso, nossos pais não faziam dever de casa ouvindo rádio ou na mesa da cozinha, enquanto a mãe cozinhava por perto?”, questiona. Para ela, sempre houve excesso de estímulo. “De todos os estímulos que recebemos ao mesmo tempo a cada instante – e não é preciso internet para isso – só conseguimos dar atenção a um. Não importa se criança ou adulto, a consequência de tentar fazer mais de uma tarefa ao mesmo tempo é que se corre o risco de nenhuma delas ser feita direito”.
Guiherme Polanczyk, professor doutor de psiquiatria da infância e adolescência da Universidade de São Paulo, lembra que, independentemente de avanços tecnológicos e da velocidade da informação, “conhecimentos sólidos se adquirem com leitura, com aprofundamento”. Assim como a construção de relacionamentos interpessoais sólidos. “Se as crianças aprendem que o conhecimento e os relacionamentos são instantâneos, se não aprendem a se aprofundar, a ter paciência, a esperar, a tolerar a frustração, pode sim haver prejuízos importantes na formação da personalidade”, afirma.
Dosagem de estímulos
Os estímulos são positivos se sua natureza é adequada e se oferecidos na dose correta, diz Guilherme. A tarefa importante dos pais é justamente procurar dosar esses estímulos, especialmente porque a habilidade multitarefas só passa a ser mais desenvolvida depois da adolescência. "O desenvolvimento é acompanhado de uma progressiva capacidade de coordenar informação e conduta, e até mesmo no final da adolescência essa habilidade continua se desenvolvendo", afirma o psicólogo Cristiano Gomes, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "O importante, na realidade, é ajudar a criança a desenvolver essa habilidade". O bom senso é ainda o que pode mensurar e frear os excessos – tanto das crianças quanto dos pais, que podem tomar um fenômeno cultural como doença.
Para qualquer caso, no entanto, o recomendado é que se tenha atenção às atividades e às respostas das crianças. “Envolver-se com muitas tarefas ao mesmo tempo e não concluí-las pode ser um indicativo de problemas de atenção. Caso existam outros sintomas de desatenção, que se manifestam em diferentes locais e que ocorrem de forma intensa e persistente, trazendo problemas para a vida da pessoa, podemos estar diante do transtorno de déficit de atenção com hiperatividade, mais conhecido pela sigla TDAH”, afirma Polanczyk.
Ele dá exemplos de como o mero processamento de vários estímulos ao mesmo tempo não é necessariamente um problema: um controlador de tráfego aéreo precisa lidar com várias informações simultâneas buscando um objetivo, assim como um motorista que tem de chegar a um determinado destino. Mas somente quando a realização de tarefas diárias passa a se dar sempre dessa forma é que pode haver algum problema. “É necessária atenção em todas as fases, mas, sem dúvida, quanto menor a criança, maior a necessidade de que os pais estejam atentos para a qualidade e a quantidade do estímulo recebido”, recomenda.
"Os pais podem ajudar as crianças a fazer as coisas passo a passo, ensinando-as a controlar seu comportamento, observar o processo e desenvolver concentração, foco, paciência e capacidade de lidar com a frustração", destaca Cristiano Gomes. Para Suzana Herculano-Houzel, o melhor que os pais podem fazer é servir de modelo. “Os próprios pais podem atentar para essa limitação que todos têm e sempre tiveram, e não dar o exemplo de tentar fazer duas coisas ao mesmo tempo. Ensinar as crianças desde cedo a fazer uma coisa bem feita de cada vez é a melhor lição neste caso”, completa.
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