sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A crítica à cultura da pedagogia: Estados Unidos e Brasil



Diante de um colega que dizia que “os americanos são bobos e incultos” um outro respondeu de modo definitivo: “imagina então se fossem inteligentes heim?” Pois é, os Estados Unidos se tornaram o mais rico e complexo país de todos os tempos modernos em muito pouco anos, e isso sem grandes máculas contra a mais homenageada democracia do mundo. Ao contrário, os Estados Unidos são mais democráticos hoje que quando da época da Independência. Tudo isso se torna ainda mais importante e notável se considerarmos que se trata de um país enorme, continental, com uma das maiores populações do mundo, e que nos anos trinta do século XX entraram em falência total.

Tudo isso não se deve a uma revolução educacional, mas que os índices de educação dos Estados Unidos são estonteantes, isso não se nega.

Os Estados Unidos deram ensino médio para 98% da população apta para tal e colocaram no ensino superior mais de 50% da população dos seus jovens. Além disso, criaram a mais importante, a mais rica e mais produtiva rede de universidades do mundo, com a qual não só geraram scholars de altíssimo nível como também atraíram os mais renomados professores de outros países. Os jovens americanos ultrapassaram franceses e alemães em número de livros lidos em um ano. Um americano médio lê em torno de 15 livros ao ano enquanto que um francês, até pouco tempo considerado um bom leitor, não ultrapassa 8 livros ao ano (a média do brasileiro é menos de um livro por ano). Nos exames internacionais os americanos ficavam atrás dos países mais ricos da Europa, principalmente quanto ao quesito “interpretação de textos”. Hoje, os exames internacionais mostram o aluno da High School americana como equiparado ou melhor que alunos alemães, franceses e ingleses. Se não bastasse isso, os Estados Unidos deram para o mundo o mais importante filósofo da educação de todos os tempos contemporâneos, John Dewey. Esse é um dado interessante: o maior filósofo da América ou, digamos, o filósofo da América correspondente a um Sartre na França ou um Habermas na Alemanha é um filósofo dedicado à pedagogia – um feito inédito no mundo.

Muitos americanos, na transição dos anos 50 para os anos 70, criticaram Dewey e toda a cultura da pedagogia como sendo a responsável por um suposto atraso dos Estados Unidos em alguns quesitos educacionais. A corrida espacial com a URSS, na qual os americanos saíram atrasados, provocou os mais conservadores a se lançarem a uma crítica à pedagogia democrática de Dewey, que eles entendiam – erradamente – que dominava as escolas americanas. O tom geral da crítica é que a escola americana, de um modo geral, se ocupava mais das práticas de convivência social e de exercício da cidadania democrática que com o ensino de ciências e línguas, o que teria jogado o país em um segundo lugar no mundo da disputa tecnológica.

Quando do final dos anos 60, com a derrota dos movimentos de rebeldia e protesto no mundo todo, inclusive e principalmente nos Estados Unidos, essas críticas a Dewey e à pedagogia em geral ganharam espaço na mídia americana e, enfim, aconteceram reformas educacionais ensino que visavam uma preocupação maior, já no ensino pré-universitário, com conteúdos e com rigidez disciplinar ao modo tradicional. No entanto, os resultados alcançados a partir daí, pelo que tudo indica, quando foram bons, talvez tenham sido devido mais ao grande movimento deweiano anterior que propriamente pelas alterações posteriores de caráter conservador. Pois, na verdade, Dewey não caiu no esquecimento. O que ocorreu é que tudo que se fez nas últimas décadas do século XX nos Estados Unidos, não se fez propriamente contra Dewey, mas já com o saber deweiano incorporado. Aliás, se os americanos puderam utilizar da pedagogia de Paulo Freire para educar grupos de minorias étnicas, isso foi devido, em parte, não só a um movimento da esquerda americana, mas também e principalmente porque o legado de Dewey havia sido incorporado por Freire ou, melhor dizendo, era uma de suas bases teóricas. Foi sob um império de um mundo pedagógico que se construiu o que se poderia chamar de revolução educacional americana, que realmente está dando seus frutos agora.

Talvez isso devesse ser notado por nós no Brasil, não só pelas pessoas da “área de pedagogia”, mas principalmente pelos intelectuais em geral que, não raro, vivem reclamando da piora de nossa escola pública de ensino básico (entre os quais eu me incluo, ainda que ponha um peso enorme no problema salarial). Assim, na universidade, filósofos, sociólogos, químicos, engenheiros, historiadores etc., em vez de olharem com desdém para as faculdades e institutos de educação e, enfim, menosprezarem ou mesmo odiarem as “matérias pedagógicas”, deveriam se engajar no trabalho dessas faculdades. Não para reiterar o que se faz ali, mas para questionar as razões da cultura pedagógica de tais ambientes.

Não são poucos os que acusam as faculdades e institutos de educação de nossas universidades públicas de cultivarem um conjunto de saberes de baixo estatuto epistemológico. Alguns dizem que há uma disseminação de literatura meramente ideológica nesses nichos, que há “muito Paulo Freire e pouca matemática”. Outros questionam tais lugares por causa de suas modinhas pedagógicas. Há também os que questionam a própria formação dos professores da parte pedagógica das licenciaturas, acusando tais lugares de manterem professores de pouca erudição. Não posso dizer que essas críticas não são válidas. Todavia, o problema dessas críticas é que elas permanecem exteriores. Quem as faz não luta para que o corporativismo dos pedagogos, se é que existe para além de outros corporativismos, seja quebrado e que exista o equivalente aqui no Brasil, contra a pedagogia, ao que ocorreu com a “crítica a Dewey e à pedagogia” nos Estados Unidos.

O que estou dizendo é que, ao invés do silêncio que fazemos sobre Paulo Freire e outros que foram importantes para a formação da nossa cultura pedagógica em nossas universidades (Lauro de Oliveira Lima!), não fosse uma crítica meio caolha, e sim qualificada. Uma boa crítica seria não aquela que desmerece Paulo Freire e, sim, ao contrário, aquela que viesse a questionar os institutos e faculdades de educação da razão deles idolatrarem Paulo Freire e, no entanto, na prática, continuarem com a “educação bancária” que ele tanto criticou. Talvez fosse o caso de se questionar qual a razão de ler Morin e não ler mais Paulo Freire como se deveria ler, ou seja, sem domesticação. Poder-se-ia, enfim, explicar qual a razão dos professores da parte pedagógica das licenciaturas terem tanto medo de lerem os clássicos com os alunos! Por que os professores das licenciaturas carregam em baixo de braço um monte de livrinhos de autores desconhecidos e não mais O Emílio ou A República?

Talvez pudéssemos, assim, criar uma revolução produtiva contra a “cultura pedagógica”. Inclusive, poderíamos, nessa tarefa, fazer até melhor que os americanos fizeram quando começaram a crucificar John Dewey, toda a Escola Nova e, enfim, toda a pedagogia. Sonho com o dia que possamos adotar a parrhesia filosófica no contexto do debate sobre a pedagogia no Brasil. Deveríamos imitar os americanos, mas no que eles fizeram de controverso, não no que eles fizeram de ruim ou bom.

2010 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ

Fonte: O Filósofo

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