quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Quem é burro?


24/06/2010

O fim da burrice

“Você é burro menino?” – quem não ouviu isso em sala de aula? Os de minha geração, todos ouviram. Alguns tiveram a sorte de jamais ouvirem tal frase dirigidas a eles próprios, mas não tenho dúvida que escutaram seu eco. A palmatória havia sido enterrada fazia tempo, mas um puxão de orelha e até uma régua quebrada na cabeça eram bem toleradas pela criançada e aprovada pelos pais.

Fiz a “escola primária” em meados dos anos sessenta. O movimento da pedagogia da Escola Nova que, enfim, colaborou em muito para a suavização das relações entre professor e aluno, já estava entre nós há mais de trinta anos. Todavia, só na minha época de escola primária é que a “pedagogia renovada” começou, de fato, a mudar alguma coisa na sala de aula.

Lembro bem que do primeiro para o segundo ano mudei de prédio e, então, na nova sala, as carteiras já não eram fixas no chão e o tablado do professor havia desaparecido. As “normalistas estagiárias” haviam sido orientadas para nunca chamar um aluno de “burro”. Elas vinham para a classe só uma vez na semana. As nossas professoras nunca deram bola para as jovens que vinham ali dar “aula prática de estágio” e muito menos para o que essas moças aprendiam na Escola Normal. Continuaram a usar “seu burro!” a torto e a direito até o final do meu quarto ano (1969). Quando entrei para o ginásio, aí sim, não me lembro de ter ouvido alguém usar tal expressão.

Ouvi dizer que o “você é burro menino” (com “!” ou “?”) continuou a sua história ainda durante mais alguns anos na escola pública. Hoje em dia, qualquer coisa parecida com isso pode levar o professor aos tribunais e, não raro, a uma punição pouco confortável – talvez merecida. Adotamos a idéia de que a missão civilizadora da escola deve utilizar métodos civilizados. Todavia, surgiu aí um efeito colateral, não propriamente para a escola, mas para a nossa conversação em geral. O “você é burro menino”, uma vez proibido na sala de aula, começou a perder sua força de frase de estimulação (um feedback negativo) ou de humilhação para se tornar uma mentira à luz da ciência, em especial da psicologia. Nossa aventura semântica se fez de tal modo que, não raro, pegamo-nos hoje dizendo por aí que ninguém é burro e que a burrice não existe.

Bom, como ninguém mais é burro e como a burrice não existe a quem vamos atribuir os erros que, afinal, continuam a ser cometidos aos borbotões em tudo que fazemos? Todos os dias nós temos de criar mais e mais palavras para substituir o “você é burro menino”, como afirmação ou pergunta. Uma ciência da psicologia que aconselhou não chamar ninguém de burro, pois isso serviria como desincentivo, criou uma verdade científica que não se importa mais com qualquer feedback, e sim com o que seria uma descoberta estranhíssima: ninguém entre nós é burro. Minha geração foi, talvez, a última que conviveu com a burrice. Hoje, todos os jovens são inteligentes.

Aceitamos assim a lógica da compra de preservativos: não existem os tamanhos “pequeno”, “médio” e “grande”, a classificação sugerida é “gigante”, “colossal” e “monstro”. Ou a lógica dos quartos de motel, que aboliram o quarto “simples”; o quarto mais pobrezinho é já o “executivo”, ainda que continue, é claro, sendo o quarto simples. O McDonalds foi mais esperto, já fez o “Big Mac” nascer “big”. Pode agora ir diminuindo de tamanho e aumentando de preço, mas sanduíche é big por nascimento. A Unicamp, por sua vez, aboliu a nota nos exames de pós-graduação: todo mundo é, de início, já “aprovado”, e aí são dados os “méritos”: “com louvor”, “com louvor e mais sei lá o que” etc.

Assim é a juventude de hoje, do primário ao doutorado: “inteligentes”, “vivos” e “gênios”. As mães adoraram essa semântica do elogio. Uma revolução! Da puericultura aos manuais de tratamento de adolescentes é só flores aos rebentos da classe média. Eis as mães atuais falando: “Ele é inteligente o danadinho, mas não passou no vestibular” (pois, afinal, o vestibular é um “engodo da burguesia para tirar os pobres da escola e blá, blá, blá – aquela “conversa fora do lugar”, sabe não é?). “Ela é uma menina muito viva, mas de tão viva que é, não consegue ficar parada e, enfim, não estudou e não passou no vestibular – mas o dia que pegar firme, passa fácil”. “Nossa, meu filho é um gênio, ele nem fez cursinho e já entrou direto na medicina da Unimar, em Marília” (Unimar, se você não sabe o que é, esqueça, nem é bom saber!). Ninguém mais é burro: cada jovem de classe média é ou inteligente ou vivo ou gênio. Não consigo entender a razão do Brasil ter problemas nos exames internacionais com uma juventude assim.

Como a população brasileira foi declarada, por decreto científico, toda ela inteligente, os erros agora vão ganhando explicações cada vez mais hipócritas. Assim, não raro, não conseguimos mais corrigi-los, pois não se pode nem mais dizer que alguém errou, uma vez que, se dissermos e quisermos ser verdadeiros, confessaremos que errou pela décima vez e, no entanto, não é burro, o que torna tudo muito misterioso.
O nascimento da burrice

Eu sou da velha guarda e sei perfeitamente, junto com os filósofos frankfurtianos Adorno e Horkheimer (não à toa, alemães), que é uma coisa pouco inteligente dispensar a idéia da existência da burrice e menos ainda a de que existem burros.

Entre os sketchs finais do clássico Dialektik der Aufklärung, dos dois frankfurtianos, há um com o título “a origem da burrice”. Não se trata de um texto de cunho psicológico ou pedagógico. Não deve ser lido assim e, por isso, o que vou dizer daqui para diante precisa ser compreendido em um registro especial, tipicamente filosófico, que é o da história da subjetividade, um tópico que já se tornou uma constante em meus artigos e livros.

Horkheimer e Adorno denominam a burrice como cicatriz. A burrice é fruto de uma repressão à espontaneidade. Essa repressão faz com que um movimento de curiosidade ou um movimento aleatório, que poderia se repetir para em seguida ter continuidade, fique se repetindo apenas até certo ponto, sem nunca avançar, sem jamais se desdobrar em uma ação nova. Isso é a burrice: a cicatriz que marca o corpo e que faz o organismo se tornar maquinal, repetitivo, aparentemente brincalhão, porém triste. A tristeza da burrice está no fato de que quem se tornou estúpido mostra-se sempre pronto a repetir o gesto que foi vítima da repressão, do choque – o gesto que fez seu autor experimentar o medo.

A burrice do burro é específica, como toda burrice. Afinal, o que faz o burro, o animal? Ele é conhecido pelo fato de “empacar”. O burro no sentido metafórico faz o mesmo. Ele repete o gesto sempre em algum lugar, motivado por algo que não sabemos o que é, mas que logo percebemos que é sempre a mesma coisa. Ele reproduz o gesto que fez pela última vez, quando foi ali repreendido (por alguém) ou se machucou (no confronto com algo). Não aprendeu, mas se recolheu diante do medo. No caso do burro animal, ele cessa de andar no ponto em que alguma repressão ocorreu. Este ponto pode não ser um local físico, espacial, mas apenas as condições cinestésicas que o fazem recordar dor e medo. É interessante que o burro animal não volta, apenas não segue. Pois não é pelo reconhecimento do local que pára, é muito mais pela informação que seu próprio corpo transmite a si mesmo. A cinestesia é tudo nesse caso. Este comportamento é o da burrice típica, o de todos os que tiveram que negar a si mesmo por causa de uma admoestação. Incorporaram a admoestação como quem ganha uma cicatriz. Nesse sentido, a burrice é uma cicatriz. Ora, mas no caso do homem que forma seu ego como corpo, pode-se dizer que nem é no sentido metafórico que a burrice é uma cicatriz, e sim literal. Podemos saber em que pontos do corpo, do ego moderno enquanto elemento corporal par excellence, estão localizados os momentos que determinaram uma pessoa a ser burra.
Essa situação aparece exemplificada no livro de Horkheimer e Adorno, o Dialektik der Aufklärung, na parte em que os frankfurtianos contam a história da chegada de Ulisses de volta à Ilha de Ítaca, da qual era senhor.

Ao aportar em Ítaca, Ulisses não é reconhecido por Penélope. Ele é reconhecido somente por duas características corporais, ambas são marcas. Uma é o cheiro; o seu cão o reconhece. Outra é uma cicatriz de infância; por esta, decisiva, ele é reconhecido pela sua ama, a que cuidou dele quando criança. Ulisses retoma, então, sua condição de rei de Ítaca, mas não pelo que pensa e diz, e sim pelo que deveria ser o menos confiável para nós, os testemunhos de um cão e de uma velha que, para tal, mostram marcas do corpo de Ulisses. Não deveria Penélope reconhecer seu cheiro? Não deveria mais alguém lembrar da existência da cicatriz? Não foi o que ocorreu. Portanto, será mesmo que foi Ulisses quem voltou da Guerra de Troia?

Mas, este era o problema: o que havia em Ulisses, a mais, para identificá-lo? Um tipo de sabedoria? Talvez não.

Ulisses, ao aportar em Ítaca, como herói matreiro, não mostra nenhuma inteligência viva. Exibe uma inteligência que não é outra senão a do calculador. É a inteligência restrita daquele que se mostra esperto, mas que está longe de ser inteligente e muito mais longe, ainda, de ser sábio. Ele pensa somente segundo a razão estritamente instrumental, a que arruma os meios para atingir determinados fins, mas que não faz qualquer esforço para avaliar os fins.

Uma vez na Ilha de Ítaca, ele continua de estratégias em estratégias, de golpes baixos em golpes baixos – como fez durante toda a sua aventura de volta à Itaca, ao passar por cada potência mítica. Não está apto em se mostrar um sábio rei da Ilha, capaz de contar o que passou na Guerra de Troia e o que ocorreu no seu retorno. Um homem que passou por tantas ricas experiências e que não se tornou um grande articulador, no tempo narrativo, de contos do amor, não é de certo modo alguém limitado? Um sábio contaria boas histórias aos convivas que estavam ali para fazer a corte à Penélope. Inebriaria a todos com a sua prosa, vencendo os rivais pela autoridade da vivência. Os rivais se afastariam, deixariam Penélope para Ulisses e sairiam dali reconhecendo a legitimidade dele ao trono de sua própria Ilha. Não! Ulisses age de modo matreiro e, enfim, violento. Nada conta de suas aventuras, nada mostra como experiência adquirida. Homero conta tudo por ele. Ulisses mesmo, não tem nada a dizer. Ele próprio é um conjunto de cicatrizes, de renúncias, de repressões auto-impingidas em nome da auto-conservação. De tanto exercício de troca no mercado instaurado entre ele e as potências míticas, Ulisses chega ao fim da jornada meio que idiotizado. Como todos os trabalhadores chegam ao mercado, no mundo moderno de Marx, Ulisses encontra Ítaca sem uma oratória sábia. O que saber fazer é calcular para, então, matar em emboscada seus rivais. A Odisseia termina em um banho de sangue, sabemos bem.

Ulisses é o herói burro. Tão festejado na cultura Ocidental por ser inteligente, é desmascarado por Horkheimer e Adorno por ser burro. Diante dos rivais ele não faz outra coisa senão empacar, ou seja, repetir. Ele repete contra os rivais a matreirice e a violência que lhe foi impingida enquanto se constituiu como sujeito, como indivíduo – o dono das terras, o senhor “burguês” proprietário de Ítaca e de vários trabalhadores. Para se tornar um indivíduo, Ulisses foi de renúncia em renúncia, e cada uma implicou em uma repressão física sentida e internalizada. Não houve sublimação para que Ulisses pudesse se tornar um indivíduo pleno, mas apenas repressão, o que o tornou um indivíduo cuja subjetividade é minguada, dada apenas pelo seu corpo. Ulisses é burro nesse sentido: repete com outros a única maneira que aprendeu como sendo o relacionamento: se é para corrigir, o melhor meio é a violência, como o que foi feito com ele. Afinal, ele não se tornou inteligente, isto é, matreiro, ao deixar de lado os prazeres e, então, passar pela dor vinda desse gesto? Para se formar como indivíduo – chamado de inteligente porque engana – Ulisses curtiu o engodo da troca falsa e a violência e, então, é isso que devolve ao mundo, no caso, aos seus rivais. Emboscada e matança.

Essa lição dos frankfurtianos diz respeito ao processo da cultura como um todo. Não diz de como cada um de nós pode ou não ser burro. Mas, em certo sentido, diz como é que a burrice se institui. E diz um pouco, sim, de como são os traços de cada burro. O burro repete e, às vezes, passa-se por alguém inteligente, pois muitos pensam que o matreiro e violento é inteligente. Não é, é burro. Pode vencer situações, mas, quando requisitado a ir além, mostra sua cicatriz, seu limite.
Tente tirar uma cicatriz. Não vai conseguir fácil. Para tirar uma cicatriz, talvez tenha de fazer outra – uma cirurgia plástica que, enfim, nunca deixará de ser uma nova cicatriz.

© Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ

Fontes: Blog O Filósofo


              Blog Diacrianos

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