terça-feira, 14 de setembro de 2010

A cada 16 dias, uma pessoa troca de sexo no Brasil
Cirurgia ganha espaço no SUS; “É uma violência viver em um corpo que não é seu”, diz Carla Amaral, há 13 anos à espera da técnica

Fernanda Aranda, iG São Paulo | 13/09/2010 11:45


Quando ela passa, os homens esticam os olhos para tentar acompanhar por mais tempo o andar cheio de gingado, que tenta equilibrar a cintura fina, o quadril largo e os seios fartos. O corpo feminino de Carla Amaral não desperta só interesse. A mesma “gatona” também já escutou que é uma “aberração”, só um dos exemplos de violência que enfrentou.

Carla não nasceu Carla, mas sempre soube que era mulher, apesar do registro indicar “sexo masculino”. O último resquício que carrega da identidade que nunca assumiu é o pênis, que garante ser usado, de forma desconfortável, só para urinar. “Hoje está até atrofiado”, diz. Ela, há 13 anos, espera que o bisturi torne mais adequado a anatomia que reconhece como errada desde a maternidade.

A cada 16 dias, o procedimento cirúrgico tão aguardado por Carla é realizado em um paciente do Sistema Único de Saúde (SUS). A chamada cirurgia de mudança de sexo foi um dos últimos atos cirúrgicos reconhecidos pelo governo brasileiro e entrou para a lista de procedimentos gratuitos só em 2008. De lá para cá, 57 cirurgias foram realizadas, sendo 10 no primeiro ano, 31 em 2009 e 16 até junho de 2010. A estatística é crescente, mas ainda irrisória perto da fila de espera formada por pessoas que, assim como Carla Amaral, sentem ter nascido no corpo errado.

Mulheres na alma

Eles não são travestis, homossexuais, drag queens ou transformistas. O nome é transexual, condição reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um transtorno de gênero. Não há nenhuma doença psíquica associada. Os que fazem parte deste grupo nascem com um órgão sexual que não condiz com a sua personalidade, explica o psiquiatra da PUC de São Paulo Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade, de Gênero e Orientação Sexual.

São “mulheres na alma” (dizem todas), mas que têm pênis. “Homens na cabeça” que nascem com vagina, tentam explicar assim. Desde que o mundo é mundo, eles tentam corrigir o equívoco de nascença com técnicas arriscadas, que envolvem automutilação, silicone industrial, hormônios proibidos e isolamento social. Carla Amaral foi vítima de todos estes perigos nos anos 80, 90 e 2000.

Carrinhos, bonecas e princesa

Era a segunda gravidez da mãe que já tinha um primogênito. A vontade de um “casalzinho” fez Maria Amaral desejar uma menina durante os nove meses da gestação. O nascimento, em 1973, trouxe ao mundo mais um varão aos Amaral. Mas daquela vez parecia ser diferente. A confirmação das diferenças veio com a chegada do terceiro filho, mais um menino. As semelhanças só surgiram após o nascimento da quarta filha, desta vez uma garota. “Eu era diferente dos meus dois irmãos e muito parecida com a minha irmã", conta hoje Carla.

"Usava modelos de roupa unissex, cabelos na altura dos ombros e quando ouvia a pergunta 'o que você quer ser quando crescer/?', imaginava sempre uma mulher alta, com seios grandes, feminina e poderosa.”

Se quando criança, o problema maior era ter de brincar com carrinhos e bola quando a vontade era ninar bonecas e vestir-se como princesa, na adolescência a vida ficou ainda mais complicada. O nome de batismo – que Carla se nega até hoje a pronunciar – foi virando ofensa. O relacionamento com o pai já havia “subido no telhado”. Ele não aceitava ter um filho tão parecido como uma filha. A mãe já não assistia à postura feminina do seu segundo garoto com naturalidade, mas a vontade de ser mulher parecia aflorar em Carla. A entrega sexual precoce aos 13 anos para um vizinho só reforçou que a homossexualidade não era explicação suficiente para aquela condição.

“Mais do que gostar do sexo masculino, eu queria morar num corpo parecido com a minha mente.”
Sem dinheiro e sem apoio, Carla procurou o silicone industrial e passou a tomar doses de hormônio por conta própria. “Sabia dos riscos, sabia que podia morrer por causa daquilo, mas juro que tudo parecia menos ofensivo do que continuar com o corpo de homem.”

Menos mistério na medicina, mais tormentos pessoais

Nas duas últimas décadas, a medicina passou a prestar mais atenção aos pacientes com transtornos de gênero e a cirurgia de troca de sexo deixou de ser feita só na clandestinidade. Os estudos também evoluíram.

“Até a metade dos anos 70 e início dos anos 80 só existiam pesquisas sobre a transexualidade que abordavam a influência psicológica e do meio externo”, afirma o psiquiatra especializado Alexandre Saadeh.
“Hoje, as pesquisas mensuram os fatores químicos existentes no processo. Já existem evidências de que não só a genética, mas componentes químicos interferem no desenvolvimento do cérebro (enquanto o bebê ainda está na barriga da mãe) e culminam nesta condição. É claro que não existe causa única, mas não é só o meio que interfere.”

Naquela época a ciência, aos poucos, começava a desvendar as razões para os cérebros incompatíveis com os corpos. As pesquisas faziam com que as técnicas, inclusive cirúrgicas, evoluíssem. Mas, no Paraná, Carla Amaral ainda era vista como um erro da natureza, uma afronta aos bons costumes. Perto dos seus 15 anos, os pais cortaram – à força – os seus cabelos. A mãe gritava o nome de batismo aos quatro cantos para agredi-la e, na escola, colegas de classe e professores reforçavam que ali não era lugar para aquela “coisa” indefinida.

“Aos trancos e barrancos terminei a 8ª série, mas não consegui mais voltar para o colégio. Ao mesmo tempo, sabia que sem o apoio da minha família, tinha que contar só comigo. Sem estudo, fui procurar emprego.”

Ônibus, prostituição e cobaia

Primeiro Carla foi atendente de farmácia, depois cobradora de ônibus – local em que, além de ser hostilizada, sofria assédio sexual diário – e, enfim, auxiliar de escritório. “O preconceito sempre permeou a minha vida profissional. Era mandada embora sem justificativa, assim como não me contratavam quando, após a entrevista cheia de entusiasmos e expectativas, eu mostrava meu RG e lá aparecia o gênero masculino na informação sobre o sexo.”

No final dos anos 90, o Conselho Federal de Medicina (CFM) classificou a cirurgia de mudança de sexo como um procedimento médico reconhecido no País. Carla, nestes tempos, se candidatou para passar pela cirurgia ainda que de forma experimental e vivia um período de desemprego absoluto. “Foi aí que me tornei profissional do sexo”, lembra.

A prostituição como um meio de sobrevivência fazia com que os dias terminassem com banhos longos. Carla sentia-se tão suja após se entregar por dinheiro que passava a bucha e sabão até machucar a pele. “Mas a vontade de fazer a cirurgia (de mudança de sexo) era tão forte que superava qualquer coisa.Precisava de dinheiro, precisava pagar as contas, precisava ser operada.”

A operação

A cirurgia de adequação do sexo masculino para o feminino consiste, em linhas gerais, na retirada do pênis, na construção de uma cavidade parecida com a da vagina com capacidade de substituir o trato urinário, em uma operação que supera 12 horas de duração. Já a “criação do pênis” é mais complicada, ainda tida como experimental e com riscos mais altos de complicação. Os movimentos de defesa dos transexuais do Brasil estimam que menos de cinco cirurgias do tipo foram feitas no País. Para cada caso, são em média 15 microcirurgias para o procedimento ser completo.

Hoje, de forma legalizada, apenas quatro centros universitários estão autorizados a fazer estas cirurgias, sendo um em São Paulo, um em Porto Alegre, um em Goiás e o último no Rio de Janeiro. Uma norma recente do CFM – datada da semana passada – deu margem para que, a partir de agora, as clínicas particulares também realizem o procedimento.

Dedos cruzados

A expectativa é com a nova resolução do CFM mais unidades fiquem aptas a absorver a demanda de pacientes que cresce a cada dia. Ainda assim, a comemoração vem com um tom de preocupação. “É uma luta nossa ampliar o número de unidades capacitadas (para a cirurgia de mudança de sexo), mas o meu receio é que ao perder o caráter experimental, clínicas sem condição e sem gabarito passem a atrair as meninas, que são tão agredidas pela vida que topam qualquer tratamento”, diz Cristyane Oliveira, uma das pioneiras a ser submetida a cirurgia de mudança de sexo no País há nove anos.

Hoje, para a pessoa conquistar vaga em um destes 4 centros cirúrgicos, é preciso ter mais de 21 anos e um laudo médico que comprove a necessidade da cirurgia. Por isso, ao menos dois anos de acompanhamento terapêutico são exigidos. Já com este documento em mãos, a estimativa é que 200 pessoas estejam na fila de espera. Uma delas é Carla Amaral. No dia seguinte do anúncio de que a cirurgia chegara aos hospitais públicos, ela já estava na fila para o cadastro . “É uma violência diária viver em um corpo que não é seu”, conta.

A possibilidade de ser operada faz com que Carla Amaral cruze os dedos todos os dias. “É a última vitória”, diz ao contabilizar suas conquistas recentes. “Via justiça, pedi para mudar meu nome e o gênero no RG. Minha mãe foi testemunha jurídica a meu favor. Este ano, consegui a mudança oficial no documento e a relação familiar voltou a ser ótima.”

O engajamento no “movimento trans” permitiu que Carla arrumasse emprego e deixasse de ser profissional do sexo. A cirurgia, considera ela, é o toque final para que a gata borralheira, finalmente, vire a tão sonhada cinderela.

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