domingo, 20 de novembro de 2011

UnB já formou mais de 1 mil universitários pelas cotas

 

Após sete anos, primeira universidade federal do País a adotar reserva de vagas para estudantes negros comemora resultados

 
 
Priscilla Borges, iG Brasília

    O programa de cotas para negros da Universidade de Brasília (UnB) completou sete anos com um saldo de 1.024 cotistas formados. Desde o segundo semestre de 2004, quando a primeira turma de estudantes aprovada pelo sistema iniciou suas aulas na instituição, 6.180 candidatos cotistas já se matricularam na universidade. Para a reitoria, o programa – o primeiro de uma universidade federal – é símbolo de sucesso.


    “Estamos no meio do processo, mas o programa é de grande sucesso e tem atingido as metas. Ele está de acordo com o compromisso público e social da universidade”, afirma a decana de Graduação da UnB, Márcia Abrahão. Em três anos, a instituição terá de fazer uma avaliação dos resultados do programa e definir se o mantém ou não.


     
    Criado para durar dez anos, o sistema reserva 20% das vagas do vestibular para estudantes que se declaram negros para uma banca de professores e pesquisadores que entrevistam o candidato. A banca pode julgar o estudante inapto a concorrer às vagas da instituição pelo programa. Antes disso, essa banca avaliava uma foto do candidato.
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    A forma de declaração da raça é apenas uma das polêmicas que a universidade enfrentou desde que decidiu criar o programa de cotas. Não há consenso entre a comunidade acadêmica sobre a necessidade da reserva de vagas ou o público alvo delas. Márcia ressalta, porém, que os estudos acadêmicos produzidos sobre o tema têm quebrado paradigmas.


     
    Jacques Velloso, professor emérito da UnB e pesquisador colaborador da Faculdade de Educação, é autor de alguns deles. Em diferentes momentos desde 2004, Velloso comparou o rendimento e a evasão dos cotistas em relação aos que entraram pela seleção comum. Analisou também o impacto do sistema para a entrada de negros na universidade.


     
    Os resultados mostram que não há diferenças significativas de desempenho entre os cotistas e os não-cotistas durante os cursos, os que entram pela reserva de vagas abandonam menos a graduação e o sistema de cotas contribuiu para mudar o perfil dos universitários. “O programa mudou sim a cara da universidade. Ele é necessário para corrigir injustiças pregressas, mas ainda possui efeitos modestos”, enfatiza Velloso.

     
    Um dos estudos do pesquisador mostra que o sistema de cotas dobrou (em alguns casos até mais) as chances de os estudantes negros ingressarem nos cursos da UnB, especialmente nos mais disputados. Se as vagas tivessem sido dobradas, mas não houvesse a reserva, o professor diz que a participação desses alunos na universidade não seria maior do que 10%.


     
    Para o professor, a UnB deverá discutir, no futuro, a adoção de cotas sociais também, para que os negros mais pobres sejam incluídos na universidade. Mas reconhece que é preciso oferecer uma educação básica pública de qualidade para que as instituições de ensino superior sejam, de fato, mais plurais.

     
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    Márcia Abrahão garante que as pesquisas desenvolvidas na UnB quebraram também outros mitos, como a possível queda na qualidade de ensino da instituição. “Os estudos provaram que o desempenho dos cotistas é excelente e independe da forma de ingresso. Na média, a nota do cotista no vestibular é menor, mas ao longo do curso ela some”, diz a decana.


     
     
    Foto: Alan Sampaio Ampliar
    Gleiciane de Figueiredo Formiga, de 31 anos, se formou em Psciologia e diz que ter entrado na faculdade por cota ajudou a aceitar melhor a cor



    Velloso analisou o rendimento de estudantes cotistas e de não-cotistas que entraram na UnB em 2004, 2005 e 2006 em diferentes cursos. De modo geral, os resultados mostraram que, em aproximadamente dois terços ou mais das carreiras, não houve diferenças expressivas entre as médias dos dois grupos ou elas foram favoráveis aos cotistas (a exceção ocorreu em uma das turmas, nos cursos da área de Ciências.



    Outra pesquisa, realizada pela professora Maria Eduarda Tannuri-Pianto, do Departamento de Economia e Andrew Francis, da Emory University dos Estados Unidos, mostra que a diferença de desempenho dos estudantes cotistas e os demais é de 0,25 (em uma escala de zero a 100). O estudo foi feito com 3 mil cotistas e não-cotistas de todos os cursos de graduação, que entraram na UnB entre 2004 e 2005.

     
    Para os pesquisadores, a vontade de concluir uma graduação é outro ponto marcante no perfil dos cotistas. Segundo Velloso, os estudantes aprovados pela reserva de vagas para negros demonstram valorizar mais a conquista do curso superior. Por isso, os índices de abandono são mais baixos. Dois anos e meio depois, 16% dos cotistas das primeiras turmas (de 2004 e 2005) haviam deixado a graduação, enquanto o índice entre os não-cotistas era de 18%.

     
    Depois das cotas

     
    Os estudantes que foram os pioneiros do sistema reconhecem que o sistema de cotas não tem a mesma representação para todos que se beneficiaram – ou ainda se beneficiam – dele. Alguns preferem não lembrar que usaram o programa como entrada na universidade, seja por medo do preconceito seja por falta de identidade negra. Outros admitem que as cotas mudaram a visão que têm de si mesmos. Ninguém, no entanto, passou ileso pela experiência.

     
    Gleiciane de Figueiredo Formiga, de 31 anos, terminou o curso de psicologia em 2010. Durante anos, sonhou com a vaga na UnB. As tentativas frustradas no vestibular não a desanimavam. Para Gleiciane, as cotas foram simplesmente a força que precisava para conquistar seu sonho. “Eu sentia muita dificuldade em aceitar minha cor”, admite.


    Para Gleiciane, ter entrado na universidade pelo sistema de cotas significou mudar a própria imagem e ganhar um diferencial importantíssimo na formação profissional. “Aprendi muito e acho que sou uma profissional diferenciada hoje, mais sensível, por causa das cotas. Trabalhei em muitos projetos, pesquisei o tema e mudei minha própria aceitação”, conta.

    O sucesso de Gleiciane, que trabalha como psicóloga em uma clínica, e da irmã dela, doutoranda em História, é considerado uma vitória pelos pais delas. Sem a mesma oportunidade, os dois mal concluíram o ensino fundamental e fizeram inúmeros sacrifícios para que as filhas estudassem em escolas particulares. A ideia era de que elas transformassem a vida familiar. Mesmo faltando livros, elas estudaram onde poderiam ter a oportunidade de se preparar melhor.

     
    Aline Borges, 25 anos, trabalha como advogada. Também pioneira das cotas na UnB, ela optou por concorrer pelo sistema de cotas porque viu na reserva de vagas uma “oportunidade a mais”. Em um curso elitizado e concorrido como o direito, Aline conta que havia preconceito e receio entre os aprovados pelo sistema em contar que eram cotistas.

     
    “Hoje eu vejo que o programa realmente mudou a universidade, mas sempre achei que o mais justo seria condicionar a reserva também aos alunos que concluíram o ensino médio em escolas públicas. É verdade que, em todas as classes sociais, o negro sempre foi mais discriminado. Mas os negros de classes mais altas cursariam uma faculdade de qualquer maneira”, comenta a jovem, que estuda para ser procuradora.

     
    Parte da história
    Foto: Alan Sampaio
    Eduardo Alves, 28 anos, fazer parte da primeira turma de cotistas
    negros da UnB


    Para o pedagogo Eduardo Alves, 28 anos, fazer parte da primeira turma de cotistas negros da UnB significa participar da história. Uma história que, para ele, mudará a sociedade brasileira para sempre. Primeiro, porque pesquisas e análises de uma população pouco representada na academia estão sendo produzidas. Segundo, porque os cotistas obrigaram a comunidade a discutir e a enfrentar o próprio racismo.

    Eduardo reconhece que não foi fácil o início da faculdade. “Quando me vi na lá dentro da UnB, me sentia o próprio racismo ambulante em um espaço de brancos. Foi fenomenal ter entrado pelas cotas porque pude trabalhar esse conflito. Eu não digo que não teria conseguido entrar na universidade sem as cotas, mas elas foram fundamentais para meu processo humano e político”, afirma. Hoje, o jovem estuda para o mestrado em Filosofia.

     
    Ele acredita que se declarar negro não é uma tarefa fácil. Mas ele segue otimista com os efeitos do programa de cotas. “Ele incluiu um corpo negro na universidade que não existia. O tanto de material intelectual produzido por negros hoje me deixa satisfeito. Vejo que as individualidades negras estão muito mais ativas depois do programa”, analisa.

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