Minas Gerais teve o privilégio de ser, durante quarenta e oito dias, o cenário das mais belas cenas de cidadania protagonizadas pelos profissionais da Educação que, acreditando na força da união, buscaram com coragem melhores condições de trabalho, salários mais dignos e melhorias no ensino público estadual. Creio não ser por acaso que movimentos com essas características aconteçam por aqui, afinal, outrora, neste mesmo solo, os Inconfidentes deixaram-nos como legado, além do sonho de se construir uma pátria livre, justa, a coragem de buscar a realização desse sonho, mesmo que para isso tivessem que sacrificar, não apenas o salário, se é que o tinham, mas a própria vida.
No entanto esses movimentos, greves, protestos..., nem sempre são bem aceitos ou compreendidos pela população em geral, pois, em muitos casos, a desinformação e a falta do senso de cidadania, impedem que algumas pessoas tenham maior clareza acerca do que é certo, do que é justo, do que é o exercício regular de um direito.
Isso ficou bem evidente no transcurso dessa aula multidisciplinar de cidadania – a greve -, pois bastou que ela fosse suspensa, já que ainda estamos em estado de greve, para que as perguntas começassem a surgir. E ainda hoje somos abordados, inclusive por colegas, com a pergunta que não quer calar: o que ganhamos com essa greve?
Alguns professores dizem que ganhamos e justificam essa afirmação com incontida emoção, fruto das experiências vivenciadas ao longo de todos esses dias de paralisação. Enquanto isso, outros afirmam secamente o contrário. Mas como ganhar ou perder é uma questão de ponto de vista, cada um, à sua maneira, tem o seu e, portanto, não deixa de ter suas razões. Daí resultam as paradoxais lições de uma greve.
Os que optaram por não caminhar conosco em busca dos objetivos que tornariam as condições de trabalho mais saudáveis e os salários mais justos acham que perdemos. E justificam esse pensamento e também a opção que fizeram com a famosa frase “eu já sabia”.
Sabiam que permanecendo na escola, mesmo sem alunos, cumprindo, em algumas escolas, carga horária de apenas uma hora diária, quando deveriam cumpri-la integralmente, garantiriam seu salário no final do mês. Enquanto isso, seus colegas estariam no front de batalha, atirados a toda sorte, lutando por melhores condições de trabalho para toda a categoria e também por melhoria na qualidade do ensino oferecido aos alunos da escola pública.
Sabiam também que se houvesse retaliações por parte do governo, como por exemplo, corte de salário, o deles estaria garantido.
Sabiam ainda que alguns colegas, novatos ou veteranos, não apoiariam esse tipo de manifestação, pois duvidavam de que com isso pudéssemos conseguir alguma vantagem. Logo não valeria a pena correr nenhum tipo de risco.
Todavia não sabiam que certas posturas não são condizentes com o ofício de professor. Afinal, do professor esperam-se também bons exemplos. Contudo, nesse período de greve, esses professores perderam uma bela oportunidade de mostrar, com exemplos, o que se deve fazer quando a situação é de injustiça, de exploração e, no caso em comento, de desvalorização dos profissionais da educação do Estado de Minas.
Agora, independentemente da posição assumida pelos Profissionais da Educação, principalmente, professores, trago à baila, a título de reflexão, estas lições do professor Paulo Freire:
“Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não saber ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. (...) Sou professor a favor da decência, contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda. (...) Sou professor contra o desengano que me consome e imobiliza. Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por esse saber, se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo descuidado, corre o risco de se amofinar e de já não ser o testemunho que devo ser de lutador pertinaz, que cansa mas não desiste. (...) Assim como não posso ser professor sem me achar capacitado para ensinar certo e bem os conteúdos de minha disciplina, não posso, por outro lado, reduzir minha prática docente ao puro ensino daquele conteúdo. (...) Tão importante quanto o ensino dos conteúdos é a minha coerência na classe. A coerência entre o que digo, o que escrevo e o que falo.”
Ainda, a título de reflexão, agora com Oscar Wilde:
“Qualquer homem que não se sentisse descontente com o péssimo ambiente e o baixo nível de vida que lhe são reservados seria realmente muito estúpido.”
“Qualquer pessoa que tenha lido a história da humanidade aprendeu que a desobediência é a virtude original do homem. O progresso é uma consequência da desobediência e da rebeldia do homem.”
Por fim, com Jaime Pinsky
“A cidadania instaura-se a partir dos processos de lutas que culminaram na Declaração dos Direitos Humanos (...) e na Revolução Francesa. Esses dois eventos romperam o princípio de legitimidade que vigia até então, baseado nos deveres dos súditos, e passaram a estruturá-los a partir dos direitos do cidadão. Desse momento em diante todos os tipos de luta foram travados para que se ampliasse o conceito e a prática de cidadania e o mundo ocidental o estendesse para mulheres, crianças, minorias nacionais, étnicas, sexuais, etárias. Nesse sentido, pode-se afirmar que, na sua acepção mais ampla, cidadania é a expressão concreta do exercício da democracia.”
“Sonhar com a cidadania plena em uma sociedade pobre, em que o acesso aos bens e serviços é restrito, seria utópico. Contudo, os avanços da cidadania, se têm a ver com a riqueza do país e a própria divisão de riquezas, dependem também da luta e das reivindicações, da ação concreta dos indivíduos.”
Além de belíssimas, essas lições são essenciais para uma prática docente que tenha como objetivo principal mudar a realidade de desigualdade social que deixa na miséria milhões de cidadãos brasileiros.
Mas para mudar essa realidade é necessário que escola e professores levem o aluno a tomar consciência dela para, depois, criarem condições para reduzi-la.
Isso, porém, só será possível se os professores conseguirem “preparar esse aluno para a participação crítica na transformação social, como cidadão consciente”.
Entretanto, professores que se omitem ou se acovardam diante de situações em que a categoria a que pertencem luta em prol de todos, não reúnem, na prática, condições de propiciar essa preparação ao aluno, porque eles mesmos não estão preparados para nenhuma transformação. Pois, se “existe um relacionamento estreito entre cidadania e luta por justiça, democracia, e outros direitos fundamentais asseguradores de condições dignas de sobrevivência”, esse relacionamento, no que tange à luta, se fez ausente na conduta deles. Portanto, não se pode ensinar o que antes não se aprendeu.
Assim sendo, pode-se concluir que da omissão sempre restam algumas lições, porém, negativas, em se tratando de professor.
Resta-nos, contudo, uma grande esperança. Esperança renascida e fortalecida nas manifestações a que a população mineira assistiu nos meses de abril e maio deste ano.
Não foi uma cena isolada. Foram inúmeras que, ao longo desses meses, saíram das salas de aula e ganharam as ruas, avenidas e praças de quase todos os municípios de Minas Gerais.
“Oh, Minas Gerais! Quem te conhece não esquece jamais!” Não esquecerá, por exemplo, que a maioria dos professores da rede estadual tem brio, dignidade e consciência da importância que eles e a educação representam para a formação de um povo instruído e politizado. Por isso foram às ruas, deram o recado, principalmente aos que estão no poder. Com respeito, é claro, porém com a consciência de que o poder existe não para que o político e a autoridade se sirvam dele em benefício próprio, mas para servir à coletividade, revertendo efetiva e equitativamente a cada cidadão a porção que garanta a ele e a sua família condições de viverem condignamente.
É bem verdade que o movimento iniciou-se com certa timidez, pois havia dúvidas de que ele, talvez, não ultrapassasse as primeiras quarenta e oito horas. Primeiro, porque há muito não se assistia por aqui a nenhuma greve que proporcionasse maiores preocupações aos governantes. Segundo, porque não estavam bem claras as reais reivindicações apresentadas pelo sindicato. Terceiro, por pairar no ar certa desconfiança de que o movimento tivesse como mote principal, interesses político-partidários. E, por fim, por se afirmar por aí que bastaria uma simples ameaça de corte de salário para que os professores, cuja estrutura financeira inexiste, consequência da má remuneração, retornassem imediatamente à sala de aula e tudo estaria resolvido.
Fato é que, independentemente de tudo que antes se pensava ou se falava, o movimento passou de uma grande dúvida a uma insofismável realidade. Realidade esta que marcou indelevelmente a todos os que se dispuseram a lutar por aquilo que acreditavam lhes pertencer por direito.
Foram momentos de pura magia, de pura emoção. Jamais se podia imaginar que em situação de tamanha tensão, houvesse espaço tão rico de ideias, sugestões, debates, reflexões sobre o presente e o futuro do professor e da educação no Brasil, cujo resultado é a conscientização de que juntos podemos mudar a realidade do docente, da educação, do país.
Eternizadas na mente e no coração de cada um, estão as mais belas e ricas imagens que nutriram corpo e alma daqueles que acreditaram que com união, coragem e fé as conquistas poderiam acontecer. E elas aconteceram em doses múltiplas, no entanto, as que mais sensibilizaram, enalteceram, enfim, mais satisfação proporcionaram aos que se aventuraram nessa histórica manifestação cidadã não poderão, em momento algum, ser aferidas em contracheque ou saldo bancário, pois o resultado, pelo seu caráter contínuo e subjetivo, transcende esse aspecto material que alguns ainda insistem em querer atribuir a ele.
E para ilustrar essa ideia de grandeza do movimento, precisamos imaginar que de cada ponto do estado, dos mais próximos aos mais longínquos, milhares de pessoas, movidas pelo mesmo sonho, deixaram para trás seus lares, suas famílias e, sem levarem em conta o desgaste, consequência de uma longa e cansativa viagem, deslocaram-se em direção à capital mineira para, em praça pública, estampar de forma clara, ordeira, e decente o sentimento de descontentamento com a política de desvalorização do docente, espécie em notória extinção, e com a falta de compromisso com a qualidade do ensino público deste rico e tradicional estado brasileiro: Minas Gerais.
Contudo, chegou a hora de parar. As propostas e as lições dessas aulas de cidadania foram apresentadas, discutidas, interpretadas. Agora estamos na fase das avaliações. A primeira deverá ser apresentada pelo governo, que organizou um Grupo de Trabalho para estudar melhorias na carreira dos Profissionais da Educação. A segunda e última caberá aos grevistas que, após análise criteriosa da proposta do governo, decidirão se concordam ou não com ela.
Sentimos, no entanto, que a proposta do governo, algo mais ou menos esperado, não atende às expectativas da categoria, pois, ao que parece, trará mais desvantagens que vantagens. Se isso se confirmar, caracterizada estará a institucionalização da vingança. Neste caso, especificamente, a derrota é de toda a sociedade, lamentavelmente.
Portanto, considerando as posições assumidas ao longo dessa verdadeira aula de cidadania e as lições aprendidas, a voz que brota da mente e do coração de cada um, fruto da interpretação que fez e da conclusão a que chegou, ecoará nos corredores da vida e a consciência mostrará qual tinha razão. Do meu coração, a voz que se ergue, por ser um retrato fiel do que penso, encontra consonância nestes versos do poeta português, Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena / se a alma não é pequena”.
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